quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A relação entre a reestruturação do mercado de trabalho e o Serviço Social

Viviane Gonçalves de Castro, aluna do 8º período de Serviço Social da UFF-Campos dos Goytacazes.




INTRODUÇÃO


A crise do capital e o advento do ideário neoliberal como forma de regulamentação da produção, enquanto transformação societária, trás consigo imbricações ao Serviço Social às quais é imperativo responder.
A crise estrutural do capitalismo nas três últimas décadas do século XX e ascensão de um padrão de acumulação flexível refletem numa nova organização do trabalho e das políticas públicas que, com base neoliberal, implica em uma crescente desvalorização dos direitos sociais e também na “privatização de empregos estatais, o enxugamento dos gastos sociais, a reforma da Previdência Social, a flexibilização das relações de trabalho, a refilantropização da assistência social, a institucionalização do voluntariado etc” (SERRA, p. 153) como é no caso do Brasil.
Há que se considerar tais mudanças estruturais para que se possa efetuar a tão apregoada prática profissional comprometida com um discurso ético-político emancipatório, que não seja apenas uma forma de reiterar as já exacerbadas relações de classe. Somente assim será possível evitar a repetição quase mecânica de um discurso inerente à profissão, como se tal discurso pudesse realizar, de forma quase milagrosa, a renovação da prática do serviço social.



1. A REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA E SEUS REFLEXOS NO MERCADO DE TRABALHO

De forma resumida, as características fundamentais de um novo padrão de produção – a acumulação flexível – se dão em três aspectos, conforme nos mostra Serra:

O primeiro deles é que há uma correspondência entre a transformação do processo de produção e as condições de reprodução e socialização da força de trabalho, as políticas de controle e gestão do trabalho e as formas de consumo e de circulação de mercadorias.
O segundo é que há uma alteração do modo de regulamentação expresso por meio de normas (...) que dão sustentação ao processo de implantação do novo padrão de produção.
(...) O terceiro aspecto é que a linha mestra desse processo de mudança é político-ideológico, configurada no neoliberalismo como doutrina que dá unidade política e define as estratégias para a implantação do novo padrão produtivo. (p. 153)


Expressões notórias desse processo de reestruturação se dão na crescente precarização do mercado de trabalho; no aumento da terceirização no processo de produção, reduzindo o trabalho e o quadro de operários dentro das empresas matrizes, barateado o custo de produção por meio de uma linha de produção horizontal; na compressão espaço-tempo acelerando o tempo de giro da produção; e na valorização de um discurso de participação e colaboração dentro das empresas, o dito endomarketing, como máscara à super extração de mais-valia, preservando dentro da empresa apenas os funcionários multifuncionais, esgotando-lhes também o trabalho abstrato.
Disso resulta uma fragmentação da classe trabalhadora, uma dissolução dos sindicatos, o surgimento do desemprego estrutural, o trabalho terceirizado precário e temporário; ou seja, há uma desregulamentação dos direitos do trabalho à qual se acrescenta o crescimento do trabalho informal, a exigência de um trabalhador polivalente e a ameaça ao trabalhador de tornar-se parte do crescente exército de reserva. Outro fator resultante disso é a crescente absorção desses trabalhadores pelos setores de serviços. No entanto, tal setor do mercado, embora venha crescendo, não será capaz de absorver sozinho tamanho contingente de trabalhadores.
No que tange a relevância de tal reestruturação, Netto (1996) ainda aponta para o fato de que “rápidas e intensas transformações societárias constituem o solo privilegiado para o processamento de alterações profissionais – seja o redimensionamento de profissões já consolidadas, seja o surgimento de novas atividades e ramos profissionais”. Quanto ao que nos diz Netto (lembrando que seu artigo foi produzido num período de discursos inflamados e de novas percepções para a profissão, logo após o Movimento de Reconceituação do Serviço Social e o advento de um projeto ético-político para a categoria), sua previsão se manteve correta e concretiza-se sempre, na medida em que, conforme nos mostra Montaño (2009, p. 194), o Serviço Social tem intrínseca em sua gênese a característica de “não desvendar as problemáticas emergentes na atualidade” e, portanto, necessita irrevogavelmente romper com essa postura.
Ao Serviço Social é necessário desfazer-se do entendimento das “políticas sociais como mero instrumento de redistribuição de renda (...) que visam atingir o equilíbrio social afetado e alterado pela dinâmica do mercado” (Montaño, 2009), o que acaba por gessar a sua ação profissional além de naturalizar as “áreas tradicionais de intervenção”, impedindo que se incorporem novas demandas sociais ao leque de “especificações profissionais”.
Como via de superação a essa postura onde se perpetuam a lógica e as demandas “tradicionais” da profissão, o Serviço Social precisa abrir-se a novos espaços profissionais, detectando novas demandas, suas raízes e seus processos por meio da pesquisa. É através das respostas dadas às necessidades emergentes e às demandas sociais que se legitimam as profissões. Sendo assim, as mudanças ocasionadas pela acumulação flexível na lógica do trabalho e, conseqüentemente, em todas as esferas da sociedade, refletem na alteração das demandas já existentes e no surgimento de outras tanta demandas. Para que não se perca a sua legitimidade, o Serviço Social deve apreender as novas demandas e capacitar-se para dar-lhes as devidas respostas. Fazendo uso da pesquisa, do conhecer a realidade sem fragmentá-la, mas ligando-a aos ideários por detrás da mesma, cabe aos profissionais do Serviço Social o desenvolvimento de estudos reflexivos que abram caminho para que se alcancem as respostas necessárias e cabíveis, a fim de não se aplicar “soluções pré-moldadas” às questões imanentes ao movimento histórico da realidade.





2. O MERCADO DE TRABALHO REESTRUTURADO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ASSISTENTE SOCIAL

Como já dissemos, a reestruturação produtiva tem seus reflexos nos vários âmbitos da sociedade e do mercado de trabalho; e essa influência resvala também nos campos de trabalho onde o assistente social exerce sua profissão.
A precarização crescente e ininterrupta das condições de trabalho se mostra não apenas como uma demanda a ser avaliada e respondida, mas assola também a categoria profissional e a submete a condições que desvalorizam o intelectual da área de forma avassaladora.
Fazendo uso dos dados obtidos na pesquisa “Serviço Social e Segurança Pública: novos espaços e novas configurações profissionais” realizada junto ao Programa Delegacia Legal, instaurado no estado do Rio de Janeiro, Marconsin e Forti ressaltam as condições (ou a falta delas) em que o assistente social se vê forçado a exercer o Serviço Social.
A pesquisa mostra a absorção do Estado do ideário neoliberal de terceirização e prestação de serviços, reduzindo o quadro de funcionários públicos. O Estado já não é mais aquele que mais emprega assistentes sociais. Ao contrário, como bem exemplifica o caso das Delegacias Legais, o assistente social - bem como outros profissionais de nível superior como o psicólogo, por exemplo – acaba por tornar-se um prestador de serviços, um plantonista, que tem, dentre as suas obrigações, de exercer o trabalho cabível a outros profissionais, agindo até mesmo como um recepcionista. Tem-se aí mais uma característica neoliberal de redução de custos: o profissional polivalente.
Tal polivalência implica também na sobrecarga profissional, o que resulta num trato absolutamente falho da questão social, já que tal forma de organização tolhe a autonomia profissional tão apregoada em nosso discurso ético-político.
Outra característica notada e registrada em pesquisa é a compressão espaço-tempo também do trabalho do assistente social: observou-se a crescente redução da carga horária do assistente social dentro das instituições, o que resulta também em um reducionismo salarial sentido por toda a categoria que acaba por ser levada a procurar exercer o Serviço Social em diversos lugares ao mesmo tempo, em busca de obter uma renda maior. Esse tipo de ação fragmenta o trabalho do assistente social e as políticas públicas de forma a aumentar a rotatividade de funcionários dentro da instituição, impelindo uma descontinuidade do trabalho do assistente social e uma desconstrução dos resultados outrora obtidos.
Há também a crescente busca pelo Estado Mínimo, delegando funções que devem ser exercidas pelo Estado à sociedade civil, por meio de organizações não-governamentais (ONG’s) e de ações sociais de empresas privadas. Com vistas a isso, fragmenta-se ainda mais o trabalho dos assistentes sociais que acabam por tornar-se “criadores/implantadores” de projetos para essas instituições. Os direitos sociais que, por lei, deveriam ser garantidos pelo Estado passam a ser concedidos como favor por essas organizações, reificando a prática assistencialista subalternizante com a qual a categoria tanto tem tentado romper. Instaura-se aí o voluntariado imanente ao neoliberalismo, com o reducionismo cada vez mais aguçado das políticas públicas, que tendem a tornar-se mais e mais focalistas com o passar do tempo.
Mesmo a Carta Magna de 1988, embora tenha sido uma conquista no que tange ao fato de ter dado caráter (ao menos no nome) de política pública à assistência social, já trás em si um caráter excludente quando afirma que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, destacando os grupos: idosos, crianças e deficientes, entendidos como parcela da população possivelmente incapaz de prover sua própria subsistência. Com o advento da acumulação flexível e do neoliberalismo, o que se observa é: 1) com a reestruturação do mercado de trabalho há o crescente desemprego estrutural, além do crescimento do índice de trabalho informal; 2) com o aumento de desemprego, aumenta-se a parcela da população em situação de pobreza; 3) com o aumento da pobreza, aumenta-se a população usuária dos serviços sociais o que por sua vez obriga o Estado a ou ampliar-se e, com isso ampliar também suas políticas voltadas ao trato da questão social ou fechar-se ainda mais. Ou seja, ou o Estado reformula-se com vistas a cumprir o papel de regulador social, criando políticas que realmente respondam às demandas sociais e que se configurem como vias de acesso à cidadania; ou o Estado delega tal função à sociedade civil, intervindo de forma mínima na organização do trabalho, focalizando cada vez mais as políticas públicas e de assistência no sentido de que, se antes o público-alvo de um determinado programa era àquele que vivia em situação de pobreza, agora o serão aqueles que subsistem em situação de miserabilidade. É o que se observa no Brasil de hoje, conforme aponta Iamamoto (2007). Não interessa ao Estado neoliberal ampliar-se.
Desta feita, eis aí um dos antagonismos que hoje acompanham a profissão: se hoje é devido à reestruturação do modo de produção que se observa a emergência e a reformulação de demandas às quais o Serviço Social deve aperceber-se e dar as respostas cabíveis, é também a reestruturação do mercado de trabalho que impõe limites claros - porém jamais intransponíveis – ao trato dessas mesmas demandas como sendo manifestações da questão social resultante de um sistema de acumulação e exploração de classes cada vez mais estruturado.



3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O Serviço Social deve aproximar-se ainda mais da realidade na qual atua, produzindo conhecimento sobre a mesma, mas sem esquecer-se de que o neoliberalismo também traz uma cultura neoliberal e não é só uma forma de organização político-econômica. Tal cultura está também impregnada nos próprios assistentes sociais, já que estes não estão fora da realidade em que atuam, mas também fazem parte dela.
Sem a pretensão de esgotar o debate, considero que apenas a produção de conhecimento não é o bastante para que se possa romper com os limites impostos à profissão pela lógica da acumulação, mas é o primeiro passo e deverá ser acompanhado de uma prática condizente com tal conhecimento produzido. O discurso sem a prática é algo vazio, e pode tornar-se um discurso fatalista e messiânico; bem como a prática sem o discurso que lhe norteia, será um agir sem pensar que só servirá para a legitimação da lógica já posta, com a supervalorização dos lucros, não importando a que preço.










4. BIBLIOGRAFIA


BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brsasília: Senado Federal, 2005.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação. 11.ed. – São Paulo, Cortez, 2007, p.160-163.

MARCONSIN, Cleir, FORTI, Valéria L.Em tempos neoliberais, o trabalho dos assistentes sociais em cena. In: SERRA, Rose (org).Trabalho e reprodução: enfoques e abordagens. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: PETRES- FSS/UERJ, 2001, p. 207-223.

MONTANO, Carlos. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, a especificidade e sua reprodução. São Paulo: Cortez, 2009, p.194 – 217.

NETTO, José Paulo. Transformações Societárias e Serviço Social. In: Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Editora Cortez, 1996, p.87 –131.

SERRA, Rose Alterações no mundo do trabalho e repercussões no mercado profissional do serviço social. In: SERRA, Rose (org).Trabalho e reprodução: enfoques e abordagens. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: PETRES- FSS/UERJ, 2001, p. 151-175